DO “TEATRO DE OPERAÇÕES” ÀS OPERAÇÕES DE TEATRO

João Lourenço, Presidente da República (não nominalmente eleito), Presidente do MPLA (partido no Poder há 46 anos) e Titular do Poder Executivo, concedeu uma entrevista a cinco órgãos de comunicação social, entre os quais o seu órgão oficial (Jornal de Angola). Os outros foram a Expansão, TV Zimbo (também sob o controlo do MPLA), O País e Lusa. A todos foi pedido (exigido, em termos práticos) o envio prévio de duas perguntas.

Nessa “benemérita” entrevista colectiva (mais uma prova da menoridade democrática de Angola), João Lourenço afirmou que a UNITA, maior partido da oposição que o MPLA ainda permite, pretende concorrer em coligação com outras forças políticas, nas eleições gerais deste ano, porque não está preparada para vencer sozinha o MPLA. Tem razão. E isso não é uma necessidade para o partido de João Lourenço já que, reconheça-se, para o MPLA basta ser dono de toda a máquina eleitoral, comandada pela sua sucursal, Comissão Nacional Eleitoral.

O chefe de Estado disse aos “jornalistas” (e alguns destes porta-microfones fizerem o devido registo) que a oposição, desde as primeiras eleições gerais realizadas em Angola, em 1992, tem feito uma má leitura do “teatro das operações” político do país.

“Teatro das operações” foi, de facto, uma excelente alegoria, ou não fosse João Lourenço um general. Aliás, nada melhor do que uma linguagem com cheiro belicista para lembrar que – como dizia o inimigo “número um” do MPLA, Jonas Savimbi – só faz a paz quem estiver preparado para fazer a guerra.

“Desde as primeiras eleições de 1992, que a oposição de forma errada” tem feito uma “má avaliação do teatro das operações”: Já “nas eleições de 92 diziam que o MPLA não tinha hipótese, pelo simples facto de, até àquela altura, ter sido partido único. Com a abertura para o multipartidarismo, antes das eleições acontecerem, já diziam ‘calças novas em Setembro'”, mas isso “não aconteceu, nem nas eleições seguintes”, disse João Lourenço.

Para João Lourenço, “mais uma vez também para estas eleições continua a haver essa má avaliação do teatro das operações”. É verdade. Graças aos seus generais, o MPLA avisa que ou ganha… ou ganha.

“No fundo, no fundo, o simples facto de o nosso principal adversário recorrer a uma espécie de coligação” a que “estão a chamar Frente Patriótica Unida, para enfrentar o MPLA, isso só significa dizer que, se calhar, estão pior do que estavam há uns anos atrás, nas eleições anteriores”, frisou o Presidente do MPLA, já que enquanto Presidente da República “manteve” uma equidistância institucional…

Para seguir o bélico “teatro de operações” do MPLA, registe-se que o presidente negou o favorecimento de empresas que têm sido apontadas como ligadas ao regime, indicando que têm financiado o Estado em alguns casos, ao contrário do que aconteceu no passado com as “empresas protegidas”. João Lourenço falou detalhadamente do relacionamento Estado/MPLA com quatro empresas (Gemcorp, Omatapalo, Mitrelli, Leonor Carrinho) que têm sido apontadas como privilegiadas no acesso à contratação pública, apontando o papel financiador que têm tido.

O Presidente, honrando o berço partidário e o “pai” que o impôs como o novo “escolhido de Deus” (José Eduardo dos Santos), disse que a maior parte das empreitadas de obras publicas, não estão nas mãos destas empresas e que quem tem a seu cargo a maioria das obras do Estado continuam a ser as empresas chinesas, quer em termos do número de empreitadas, quer do valor que representam, apontando exemplos como os da barragem de Caculo Cabaça (Cuanza Norte) Novo Aeroporto de Luanda ou Porto do Caio (Cabinda).

João Lourenço destacou que o país já teve empresas empreiteiras de vários países – brasileiras, portuguesas, chinesas, e em breve as turcas, e sublinhou que o executivo quer também maior participação de empresas angolanas privadas. Privados do MPLA, entenda-se.

“Mas que não sejam privadas que vão buscar dinheiro à Sonangol, à Endiama, à Sodiam, que não vão buscar dinheiro às empresas públicas”, ironizou, numa alusão aos processos judiciais em que estão implicados familiares e colaboradores próximos do antigo presidente e seu antecessor e “pai” político, José Eduardo dos Santos. É claro – esclareça-se – que quem disse que viu roubar, ajudou a roubar, beneficiou do roubo mas não é ladrão foi, apenas e só, um sósia deste João Lourenço que (por sinal) também chegou a ser vice-presidente do MPLA e ministro da Defesa.

João Lourenço rejeitou comparações com o que acontecia anteriormente, pois as empresas “que, no passado, eram protegidas” e concentravam os negócios do Estado “nunca financiaram o Estado em um tostão”. Daí não ser necessário conhecer o verdadeiro património dos actuais altos dirigentes do MPLA.

“Antes pelo contraário, iam às empresas públicas, Sonangol, Endiama, Sodiam, até ao BNA (Banco Nacional de Angola) foram, buscar dinheiro do Estado em condições muito pouco claras, daí a razão dos processos que estão em curso”, reforçou. Registe-se que, como testemunha o silêncio, João Lourenço sempre foi contra isso e manifestou o seu desacordo estando quieto, calado, surdo e mudo.

João Lourenço disse ainda que o Estado recebe propostas de financiamento de empresas de todo o mundo, muitas das quais não apresentam credibilidade (aferível pelo índice de bajulação inerente) ou têm condições gravosas, enquanto a Gemcorp (sediada em Londres) e a Mitrelli (de origem israelita) têm oferecido financiamentos vantajosos, que não usam o petróleo como colateral, obrigação que foi descontinuada no caso da Mitrelli.

A única excepção é a linha de financiamento que o Estado angolano mantém com a China, já que João Lourenço assumiu que não alcançou ainda o objectivo “de nos livrarmos do colateral petróleo”.

O chefe do executivo angolano concretizou projectos e financiamentos no caso dos quatro grupos que têm sido dados como privilegiados na sua relação com o Estado.

No caso da Gemcorp disse que, de 2016 à data, financiou a economia angolana em 2,4 mil milhões de dólares, sobretudo na área de defesa e segurança, saúde e energia e águas, incluindo projectos de combate à seca, tendo também iniciado a construção de uma refinaria de petróleo em Cabinda.

“Este projecto que a Gemcorp está a executar é um projecto privado, não é um projecto público, o Estado angolano não vai pagar nada nos próximos anos à Gemcorp, esse projecto não constitui divida publica”, garantiu, acrescentando que a Sonangol (petrolífera do MPLA) ganhou 10% dessa refinaria sem encargos.

Sobre o grupo de Benguela, Leonor Carrinho, que “começou do nada” e foi crescendo ao longo dos anos, afirmou que o “Estado não pôs um tostão” na sua mais recente indústria de transformação de produtos alimentares, e que a empresa tem recorrido à banca comercial para se financiar.

O Presidente (tanto faz se do MPLA se do país) disse que o executivo está empenhado em reduzir a presença do Estado na economia que está demasiado “estatizada” e negociou uma linha de crédito de mil milhões de euros com o Deutsche Bank para financiar exclusivamente o sector privado, sendo que apenas Leonor Carrinho “conseguiu provar que está habilitada a aceder a esta linha de crédito” e acrescentou que “é uma vergonha” que mais empresários não recorram a esta linha.

Quanto aos israelitas da Mitrelli assinalou que, entre 2012 e 2013, concederam uma facilidade de crédito de sete mil milhões de dólares ao Estado angolano, que foram usados para construir habitação (centralidades) e, mais recentemente, entre 2020 e 2021, financiaram 1,7 mil milhões de dólares para construir a sede da Comissão Nacional Eleitoral, hospitais, habitação, estádios de futebol e o Centro de Ciência e Tecnologia em Luanda.

Sobre a Omatapalo, considerou que se trata de “uma empresa nacional de grande dimensão” que “está à altura de realizar grandes empreitadas de obras públicas”, e que “Angola deveria ter quatro ou cinco Omatapalos”, cujas fontes de financiamento, “além das obras que faz, não são ilícitas até prova em contrário”.

Por isso, prosseguiu, “o Estado não pode prescindir de uma empresa como esta, não é para ser combatida, antes pelo contrário é para ser acarinhada, como todas as outras que pelo seu trabalho demonstrarem que merecem esse carinho”, disse, salientando que também a Omatapalo tem ajudado a financiar o Estado, iniciando obras “sem receber um tostão do Estado”.

Noutra frente do ”teatro de operações” o Presidente admitiu que o início do seu mandato foi marcado por um “braço de ferro” com Portugal a quem exigiu a transferência para Angola da investigação judicial feita ao ex-vice-presidente Manuel Vicente, por questões de soberania.

Em Setembro de 2017, quando tomou posse, “houve de facto uma espécie de braço de ferro entre dois países amigos que se querem bem, Angola e Portugal, pelo facto de a justiça portuguesa, na altura, ter pretendido julgar e, eventualmente, condenar o ex-vice-presidente da República de Angola”, reconheceu João Lourenço.

“Angola bateu o pé, porque neste domínio de cooperação judiciária existem acordos entre os nossos dois países e os acordos são para serem cumpridos”, disse João Lourenço, considerando que “Portugal acabou por remeter o processo a Angola, porque teve bom senso de reconhecer que os acordos são para ser cumpridos, sobretudo quando é entre países amigos”.

O chefe de Estado disse que além da razão que citou, esteve na base da remessa do processo para Angola o facto de defender que “os Estados que se prezam não aceitam que, a este nível – o Presidente da República ou ex-Presidente da República, o vice-Presidente ou ex-vice-Presidente -, no caso de cometerem crimes em que têm ligação com outros países que sejam julgados e condenados fora do seu país de origem, fora de Angola, no caso”. Para João Lourenço, se “a situação fosse inversa Portugal teria agido da mesma forma”.

“Não estou a ver Portugal aceitar que um ex-Presidente da República português, um ex-primeiro-ministro português, que, eventualmente, tenha cometido um presumível crime com alguma ligação a um país africano, seja qual for, Angola ou outro, que essas entidades oficiais do Estado português fossem julgadas em África”, sublinhou.

“Se me disserem que sim, vou ter que rever a minha posição, mas eu não acredito que alguém tenha a coragem de dizer que sim”, salientou.

Segundo João Lourenço, por essas razões é que Angola defendeu a sua soberania, que não é feita apenas “de armas na mão, com os canhões, a nível da fronteira para evitar a invasão de outros países”. A exigência foi uma “forma de defesa da soberania”.

“Não permitir que um ex-Presidente da República ou um ex-vice-Presidente da República seja julgado e condenado lá fora, sobretudo nos casos em que há acordos de cooperação judiciário, é também um exercício de defesa da soberania”, frisou, referindo que, com este gesto, não está “a dizer de forma nenhuma que não há crime”.

“Quem somos nós para dizer isso? Mas também não estamos a dizer que, com a recepção do processo a partir de Portugal, que o processo está arquivado. Pelo menos nunca ouvi da parte da Procuradoria-Geral da República afirmação neste sentido”, disse.

João Lourenço argumentou ainda que o antigo vice-presidente de Angola beneficia do estatuto de imunidade, referente à função que exerceu.

“O que vai acontecer daqui para frente, quando perder essa condição, essa protecção que a lei lhe confere, que este estatuto é uma lei, a justiça sabe o que fazer, não vou ser eu a dizer que caminhos seguir. Devo dizer que não tenho conhecimento que o caso dele tenha sido arquivado, se não foi arquivado, não vejo a razão de tanta preocupação”, destacou.

Em 2018, João Lourenço chegou a pôr em causa a continuidade das relações entre Portugal e Angola devido a um processo denominado Operação Fizz, que levou ao esfriamento das relações entre os dois países, depois de a justiça portuguesa ter acusado o ex-vice-Presidente angolano (do MPLA, obviamente), Manuel Vicente, dos crimes e corrupção activa, falsificação de documentos e branqueamento de capitais.

Na altura, João Lourenço classificou a atitude da Justiça portuguesa até então como “uma ofensa” para Angola.

“Lamentavelmente [Portugal] não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na Justiça angolana. Nós consideramos isso uma ofensa, não aceitamos esse tipo de tratamento e por essa razão mantemos a nossa posição”, salientou então João Lourenço.

Folha 8 com Lusa

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